Sendo as coisas assim, seria suficiente uma amável extrapolação para postular um grupo humano que pensa reagir psicologicamente no sentido clássico dessa velha, velha palavra, mas que não representa mais do que uma instância desse fluxo da matéria animada, das infinitas interações daquilo a que antigamente chamávamos desejos, simpatias, vontades, convicções, e que surgem aqui como algo irredutível a toda e qualquer razão e a toda e qualquer descrição: forças habitantes, estrangeiras, que avançam em procura do seu direito da cidadania; uma busca superior a nós mesmos como indivíduos, e que nos usa para os seus fins, uma obscura necessidade de evadir o estado de Homo sapiens até… que homo? Porque sapiens é outra velha palavra, daquelas que é preciso lavar muito antes de pretender usá-la com algum sentido.
Se escrevesse esse livro, os comportamentos standard (inclusive os mais insólitos, os da categoria de luxo) seriam inexplicáveis com o instrumental psicológico que temos em uso. Os atores pareceriam loucos ou totalmente idiotas. Não que se mostrassem incapazes dos challenge and response correntes: amor, ciúme, piedade, e assim sucessivamente, mas porque, neles, algo que o Homo sapiens guarda no subliminar abriria penosamente um caminho para si, como se um terceiro olho pestanejasse penosamente debaixo do osso frontal. Tudo seria como uma inquietação, uma falta de sossego, um desarranjo contínuo, um território onde a causalidade psicológica cederia, desconcertada, e esses fantoches se destruiriam ou se amariam ou se reconheceriam sem suspeitar demasiado de que a vida procura trocar a clave deles e através deles e por eles, de que uma tentativa ainda pouco concebível nasce no homem da mesma forma como outrora foram nascendo a clave-razão, a clave-sentimento, a clave-pragmatismo. Que a cada sucessiva derrota há uma aproximação da mutação final, e que o homem não é, mas procura ser, projeta ser, algemado entre palavras e comportamento e alegria salpicada de sangue e outras retóricas como esta.
do capítulo 62 do Jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.
único livro possível. o final desse trecho ainda vai ser epígrafe e ponto de partida de um livro que pretendo escrever.