um aniquilamento

Téo passou a mão nos cabelos para penteá-los para frente, como sempre fazia por hábito ou vício ou o terror porque as entradas cada vez mais aparentes. Quis voltar a atenção ao jogo de futebol e deixou um pouco o silêncio com a voz do narrador e o murmúrio da torcida, ainda que jogo de time menor e as arquibancadas quase vazias. Manobrava a comida até a boca e desajeitado segurando os palitinhos equilibrando o prato bem próximo do rosto, um tanto ausente enquanto permitia que escapasse a concentração e na cabeça era outra vez o estádio no segundo jogo depois da primeira vitória por quatro a zero naquela final da segunda divisão do campeonato argentino, era o primeiro gol e Gabriel que não se continha de tanta alegria, ou depois o primo Pablo que por vezes lhe agarrava o braço desesperado e desembestava a xingar o juiz com todos os palavrões que conhecia. O gol do Atlanta no segundo tempo terrível momento de tensão: juntar as mãos na frente do rosto esquecer-se de si esquecer que havia mundo que havia vida fora do estádio que tudo seguiria seu rumo passados mais alguns minutos mas o tempo suspenso os minutos intermináveis. Sentiu que o atacava um frio na espinha. Olhou os pelos do braço se eriçarem e riu consigo porque parecesse exagero, mas.

— É um aniquilamento — disse, inclinando-se para pôr o prato na mesa de centro, os olhos ainda muito fixos no jogo na televisão. Ouviu de Elisa um murmúrio. — Certeza de pertencer: você e milhares todos um só grito, uma só vontade, uma só camisa. Ninguém se importa com quem você é ou deixa de ser e estar ali é um pouco também não ser coisa alguma, não ser nada nem ninguém e se deixar dissolver em alguma coisa maior, sentir escapar escorregar das costas o peso do mundo. Saber que ali é seu lugar, saber que aquilo é o verdadeiro pertencimento, que você é aquilo, que você.

Virou-se e Elisa o encarava e lhe sorria, a cabeça apoiada no encosto do sofá desinteressada na partida de futebol. O silêncio era o ruído suave da chuva incansável e a brisa gelada que entrava por fresta muito estreita da janela. Téo devolveu o sorriso, um pouco cansado. As palavras escapavam, insuficientes e ofendidas.

— Gritar o gol é saber o seu próprio grito desaparecido no grito de todos os outros, desaparecer no grito dos outros e se diluir no grito dos outros e ser também esse grito disforme que dura um ou dois minutos antes de se transformar em cantoria renovada. Nunca senti alegria mais plena, mais verdadeira, mais pura. É aniquilamento, entrega completa, aceitar a si mesmo e a tudo que existe em volta porque a arquibancada treme sob seus pés e você está com os olhos muito abertos acompanhando a bola e a troca de passes e aquilo é tudo que importa. Há nisso uma espécie de plenitude, e você faz parte dessa certeza e. Essa certeza de fazer parte, Elisa. Você entende isso?

trecho de TRÉGUA, o romance que acabei de escrever.

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