que a ruta 40 tão mítica e longa tem seus momentos de desastrosa já não há dúvida. ali por Salta entre Cachi e Angastaco, por exemplo: a estrada de terra e pedregulho e curvas em passagens estreitas e precipícios. também já estou quase convencida de que ao construir essa estrada foram na verdade escolhendo os cenários mais lindos num corte norte-sul da Argentina. o motorista do ônibus me fez lembrar meu dentista, de costas, uns anos mais novo (porque meu dentista é meu dentista desde que eu tenho cinco anos). era o mesmo que me levou de Cafayate a Santa María porque afinal era a mesma linha. deve ter me reconhecido porque me cumprimentou como quem já me viu antes. sentei na frente ao lado de uma senhora gorda que me cedeu a janela quando eu comentei que estava ali pra ver o caminho. ela já sabia toda a paisagem decorada. disse ainda que ali batia o sol quando o ônibus arrancasse, e que eu ia tostar um pouco se deixasse a cortina aberta. dali uns quinze minutos de iniciada a viagem eu dei foi uma cochilada enquanto o sol me tostava. acordei mais ou menos quando desceu a senhora gorda, a tempo de a ouvir comentar com o motorista que se dormió la chica. mas bem acordei a tempo de começar a paisagem, pouco antes da curva que faz dar tchau aos Valles Calchaquíes e se meter em algum outro vale cujo nome eu desconheço, metido também, provavelmente (pelo tamanho das montanhas) entre cordão subandino e pré-cordilheira. montanhas meu deus montanhas. essas montanhas cheias de pontas que se movem com o movimento do ônibus porque estão tão próximas e porque logo atrás há ainda outro cordão montanhoso, que se move mais devagar, e atrás desse ainda outro, e outro; daí essa ilusão de montanhas que se movem.
depois de umas curvas e uma leve subida (uma mini cuesta, que é como chamam aqui essas espirais e zigue-zagues que escalam morros e montanhas) a estrada se esticou numa reta sem fim. fiquei um pouco observando o motorista que a bolota de folha de coca na bochecha mas ainda assim parecia um pouco entediado. me inclinei no banco pra tirar uma foto com o celular e o motorista me ofereceu uma pasta de couro sobre a escadinha do corredor pra eu me sentar ali. imaginei que ele precisava mesmo de alguém pra conversar e afinal dali a vista da paisagem era muito melhor e sem o sol me tostando as pernas.
ele foi murmurando comentários sobre os lugares, os povoadinhos, a necessidade de chegar no horário e ter que diminuir a velocidade porque ia chegar muito cedo no próximo povoado. entre a música e o motor e as folhas de coca e esse sotaque picado do norte eu entendia bem metade do que ele dizia. me contou que tinha uma namorada em Salta e outra em Santa María, e tinha também uma em Belén mas parece que ela descobriu as outras, e aí né. ou alguém contou, não entendi bem. que tinha sido casado nove anos e que a ex-mulher, a mocinha que me tinha vendido a passagem, tinha dele um ódio tremendo. se chamava Aldo, o tipo. enquanto isso a paisagem desértica de montanhas por todos os lados seguia adiante, e as montanhas mudavam de cara e de formação geológica, ganhavam outras cores e um aspecto meio lunar. umas mesetas que formavam uma espécie de sequência de tobogãs. o ar parecia ficar mais denso conforme íamos baixando em altitude e por isso não tirei muitas fotos. com o vidro meio sujo e o sol adiante só consegui umas imagens borrosas e sem contraste.
tudo essa paisagem meio desértica de arbustos e algarrobos baixinhos, e nada, ninguém. nunca. uma imensidão de espaço vazio cercado de montanhas e morros de cores diferentes, todos com muitas pontas, e o solo arenoso e cinzento na distância pintado pelos arbustos espinhosos que se distribuem por todo lado. quando ao fundo se ia aproximando uma montanhazona e umas nuvens escuras Aldo indicou que ali atrás estava Belén e quem sabe menos calor embora o termômetro do ônibus marcasse 36 graus lá fora. nos metemos por uma quebradinha de onze quilômetros e muitas curvas que desembocava na cidade de Belén.