devia ser óbvio, mas nem sempre é. porque quando acaba a água na cidade de São Paulo a gente fala mal do governador (com razão, penso eu, que não perco também uma chance de falar mal daquele pulha) e esquece que a água, afinal, tem que vir de algum lugar; esquece, principalmente, que um dia pode ser que a água acabe, de verdade. e aí não vai adiantar jogar o governador pela janela (como mui sabiamente faziam os tchecos em tempos passados). a torneira continuará calada. sair da cidade grande é ter de volta na pele a terrível consciência (quando a perdemos?) de que todos os nossos recursos são naturais; e a natureza (adivinha?) a gente não controla. a cidade pequena não tem manga o ano inteiro; por outro lado, quando é época de manga, você sai pisando em manga quando anda na margem do rio e ainda tem que tomar cuidado porque pode ser que uma manga enorme caia na sua cabeça a qualquer momento. você fica meses sem comer abacate; não chega abacate fora de época por esses lados e tem que esperar eles darem nos abacateiros. a água vem do rio: aquele mesmo rio que fica quase seco boa parte do ano. você vê a alegria das pessoas quando chove por dias seguidos, quando a umidade e o mofo cresce nas paredes das casas e a roupa lavada não seca nunca. as pessoas estão felizes, porque há água. as pessoas sabem que a chuva traz a água que vai escassear em breve, quando parar de chover.
você também sabe que se o rio secar, não vai ter água pra tomar banho, não vai ter água pra lavar a roupa, pra lavar os pratos. você sabe que, quando a safra é ruim, o preço sobe e a qualidade dos legumes diminui. às vezes, na roça, a horta não produz tomate, e você se contenta com a abobrinha. na cidade, a gente até sabe dessas coisas. mas os mercados têm frutas do mundo inteiro, o ano inteiro. a água vem da torneira (ou não). a gente pode ter e consumir o que quiser, a hora que quiser. talvez precise pagar um pouco mais caro (e meu deus que absurdo o preço dessa fruta ucraniana). não precisa pensar nos recursos necessários pra se acender uma lâmpada; não precisa saber o caminho que faz a água desde antes do reservatório; não precisa nem mesmo imaginar um peão de chapéu de palha colhendo aquelas framboesas importadas da França. já está tudo cortadinho, embaladinho, enfileirado na prateleira do supermercado. mesmo comprar uma mesa, uma geladeira, um sapato; na cidade pequena, na roça, no meio do mato: não tem pronta-entrega. tem que falar com o artesão, com a transportadora, entrar em contato com o fornecedor. você nem precisa saber todos os materiais usados na confecção da geladeira, mas você sabe que tudo isso precisa vir de algum lugar, precisa ser fabricado, precisa ser transportado. precisa que o caminhão consiga cruzar a ponte, que a estrada esteja boa. precisa de muito mais gasolina pra chegar até ali. o preço do frete não deixa esquecer. a natureza é quem manda nessa bagunça.