pontualidades

a gente acha ruim e olha no relógio e calcula o atraso e meia hora uma hora uma hora e meia, nem se pode esperar pontualidade de tipo que atrasa sempre e porque a gente gosta a gente releva, aprende a não se prender a horário e acreditar que vinte e uma e trinta é mera indicação de que o combinado acontecerá à noite. olha no relógio e suspira e arruma outra coisa para fazer etc. observar que sair de casa ele leva meia hora no banho meia hora para vestir o tênis ou encontrar uma camiseta ou pentear os cabelos e também os amigos fazem graça e querem saber como pode viver assim, como pode atrasar sempre, como pode não ficar brava. mas é que sim, meia hora para vestir as meias amarrar os cadarços arrumar os cabelos e perceber que tudo é um ato de amor por mais estúpido mais pequeno mais insignificante: sentar-se na cama para vestir as calças porque toda aquela altura e tem medo de se desequilibrar mas antes também vestir as meias tão vagarosamente e interromper-se por algo a dizer sobre uma letra de música ou um livro ou distraído e um comentário afetuoso e quem vai se importar com a ordem dos fatores se afinal, etc. apoiar o braço no joelho para amarrar o relógio e todas as ações que tão bem calculadas e o intervalo entre elas por necessidade de se olhar em volta e recalcular os passos e a todo momento recalculando os passos o próximo passo: que não haja no mundo nada pronto, nenhum procedimento definitivo e todas as ações repetidas são por reinventá-las no momento em que se fazem necessárias. e há ali algo de belo, de fazer sorrir porque a tranquilidade de se estar a cada minuto no lugar que se deve estar, jamais o desespero de estar em lugar outro, sem a pressa de adiantar o que só pode ser feito depois; estar inteiro no ato de amarrar o relógio no pulso e dar o nó nos cadarços do tênis, no ato de trancar o portão da frente depois de sair com o carro e conversar um pouco com o cachorro antes de se dirigir ao portão lateral, voltar-se para o cachorro e lhe dizer mais outras palavras e vê: é isso, essa plenitude do estar que desconsidera essa convenção esquisita a marcação do tempo e o mundo segue adiante inconsequente, os minutos correm, e quem se importa, de que nos interessa nos deixar ser arrastados pela ditatura do breve, do amanhã, da eficiência mecanizada de acordar pela manhã exatos dezessete minutos antes de sair para trabalhar vestir em dois minutos a roupa separada antes de dormir e escolher no metrô o vagão mais próximo da saída na estação em que deve descer.

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